Corrupção confessada vira conto da carochinha em livro de Emílio Odebrecht – 14/05/2023

Chegou às livrarias “Uma Guerra contra o Brasil: Como a Lava Jato Agrediu a Soberania Nacional, Enfraqueceu a Indústria Pesada Brasileira e Tentou Destruir o Grupo Odebrecht”. Foi escrito por Emílio Odebrecht. Deve-se respeitar o direito do dono da Odebrecht de apresentar a sua versão sobre o escândalo que levou a empreiteira a mudar de nome —passou a se chamar Novonor. O livro, contudo, interessa pouco.

Nada mais humano do que um relato em primeira pessoa de um hipotético injustiçado. Mas todas as opiniões de Emílio sobre a Odebrecht são suspeitas porque são de um Odebrecht. Sem o distanciamento indispensável e a isenção necessária, o que sobra é a pose. E os fatos, vistos do alto de uma pose, viram abstrações. Um Odebrecht nem precisa mentir para condenar o que fizeram com a Odebrecht. Basta selecionar as suas versões e omitir o principal: a roubalheira.

Ao expor os diálogos promíscuos de Sergio Moro com os procuradores da força-tarefa de Curitiba, a Vaza Jato impôs à historiografia uma revisão do enredo da Lava Jato. Mais do que conveniente o revisionismo tornou-se imperativo. Mas Odebrecht exagera. A anulação em série das sentenças condenatórias já havia produzido um fenômeno inusitado: a corrupção sem corruptos. Emílio Odebrecht injeta no enredo algo mais insólito: a ausência dos corruptores.

“Fábrica de delações”

Segundo Emílio Odebrecht, Moro e os procuradores da força-tarefa instalaram em Curitiba uma “fábrica de delações”. Em 2016, o próprio Emílio, seu filho Marcelo Odebrecht e os executivos da empreiteira tornaram-se dedos-duros nessa indústria de incriminações. Emílio atribui a língua solta à “coação”. Lê-se no livro: “O que mais atemorizava cada um de nós era ficar fora do acordo final, porque nossa vida se transformaria em um inferno. Era o que os promotores prometiam”.

Emílio acrescentou: “Nesse ambiente, ameaçados, pressionados, submetidos a quase insuportável sofrimento físico e mental, poucos conseguiram resistir a determinações como essa: ‘Você está aqui voluntariamente e quero que fale de fulano e sicrano’. Os procuradores apontavam o dedo e não tinham limites.”

No relato de Emílio, o que houve foi caixa dois eleitoral. Para ele, as “doações” a políticos e partidos constituem um pecadilho que não se confunde com corrupção. “Como jamais fizemos doações para partidos ou candidatos barganhando contrapartidas, eles próprios [os inquisidores da Lava Jato] encontraram a solução: ‘Você, colaborador, assume que a contrapartida é que, no futuro, o candidato pode se tornar um político importante, com poder, e você terá influência sobre ele’. E foi desse modo que, em centenas de relatos, este texto se repetiu”.

“Pagamentos indevidos”

De repente, o escândalo da Petrobras virou, na versão de Emílio, um assalto por geração espontânea. De palpável, restou apenas o rombo. No seu balanço de 2014, a estatal petroleira estimou em US$ 2,5 bilhões —R$ 6,2 bilhões pelo câmbio da época— os prejuízos provocados pelo petrolão.

O documento anota que “um conjunto de empresas que, entre 2004 e abril de 2012, se organizaram em cartel para obter contratos com a Petrobras, impondo gastos adicionais nestes contratos e utilizando estes valores adicionais para financiar pagamentos indevidos a partidos políticos, políticos eleitos ou outros agentes políticos, empregados de empreiteiras e fornecedores, ex-empregados da Petrobras e outros envolvidos no esquema de pagamentos indevidos”.

Ou seja, a própria Petrobras, não a Lava Jato, sustenta que houve o assalto aos seus cofres. O dinheiro público migrou de suas arcas para a caixa registradora de empreiteiras, a Odebrecht à frente. Na sequência, foram repassados a políticos e partidos como contrapartida pelo superfaturamento de contratos durante as gestões petistas,

Corrupção pré-Lava Jato

No depoimento que prestou à força-tarefa da Lava Jato em 2016, Emílio Odebrecht deu a entender que o convívio de sua empresa com a corrupção começou há 30 anos, quando o Brasil já havia se redemocratizado. Documento disponível nos arquivos do Senado demonstra que não é bem assim. A suspeição já rondava o Grupo Odebrecht durante a ditadura militar.

Em 17 de abril de 1979, Norberto Odebrecht, pai de Emílio, sentou-se num banco de CPI, no Senado, para se defender de denúncias de desvio de verbas, superfaturamento e favorecimento nas obras do complexo nuclear de Angra —um negócio iniciado há 51 anos, em 1972, sob o governo do general Emílio Médici.

As informações estão disponíveis nos arquivos do Senado, que guardam o relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito criada para investigar o Acordo Nuclear Brasil—Alemanha. A CPI começou a funcionar em outubro 1978, no governo do general Ernesto Geisel. O documento foi publicado no Diário do Congresso em agosto de 1982, quase quatro anos depois, já durante o mandato do general João Figueiredo, último presidente do ciclo militar.

Embrião da ‘mídia golpista’

As denúncias contra a Odebrecht eram apenas parte da matéria-prima da CPI, que nasceu de uma reação dos senadores a uma notícia publicada pela revista alemã Der Spiegel, uma espécie de precursora daquilo que o petismo chamaria mais tarde de “mídia golpista”. O ânimo da maioria dos senadores não era o de investigar, mas o de demonstrar que a revista ofendera o Brasil injustamente.

A CPI teve dois relatores. O primeiro deles, senador Jarbas Passarinho, anotou no seu relatório final coisas assim: “Em setembro de 1978, a revista alemã ‘Der Spiegel’ publicou extensa reportagem sobre o Programa Nuclear Brasileiro. Da sua leitura, nota-se o caráter sensacionalista da matéria e a clara insinuação de que o brasileiro é irresponsável e incompetente na condução de realizações complexas”.

Era nítido o desejo de desqualificar a notícia. Mas o relatório da CPI deixava antever que já vigorava na época a “normalidade” de que falou Emílio Odebrecht aos procuradores da Lava Jato. O relator toureou as denúncias da revista o quanto pôde. Deu crédito irrestrito a versões oficiais, recolhidas em depoimentos de autoridades. Entretanto, a despeito de toda a má vontade com o teor da reportagem da Der Spiegel, ecoada por jornais brasileiros, Jarbas Passarinho teve dificuldades para isentar a Odebrecht.

Sem licitação

Passarinho anotou a certa altura: “De tudo o que a revista alemã deu a público, só essa denúncia de que a Construtora Norberto Odebrecht recebeu a adjudicação das obras civis de Angra II e Angra III sem concorrência é o que se provou verdadeira. A publicação insinua, porém, que por trás do suposto favorecimento estaria o ministro [Ângelo] Calmon de Sá, do Comércio e Indústria”.

Por concorrência, a Odebrecht havia sido contratada em 1972 para construir a usina nuclear de Angra I. Quatro anos depois, em 1976, o governo contratou a mesma Odebrecht para erguer as usinas de Angra II e Angra III, dessa vez sem o inconveniente da licitação.

Por trás do favorecimento, acusou a revista alemã, estavam as digitais do então ministro Calmon de Sá (Comércio e Indústria), um ex-diretor da empreiteira. A CPI apressou-se em isentar o ministro. Alegou-se que ele deixara os quadros da Odebrecht havia mais de dez anos. Sustentou-se, de resto, que Calmon de Sá ainda não integrava o governo quando a construtora venceu a concorrência de Angra I. E estava na presidência do Banco do Brasil, não na Esplanada dos Ministérios, quando a empresa beliscou sem licitação os contratos de Angra II e III.

‘Concessão generosa’

Quanto ao favorecimento à empreiteira, a CPI fez ginástica para concluir que havia na legislação da época brechas que autorizavam o drible à concorrência. Curiosamente, o relatório de Jarbas Passarinho, aprovado pela maioria da CPI, reconhece que a Odebrecht foi premiada depois de exibir um desempenho precário no canteiro de obras de Angra I.

“De 1972 a 1974, a Construtora Norberto Odebrecht não se desincumbia satisfatoriamente de sua tarefa”, anota o relatório final. Documentos oficiais atestavam “incapacidade técnica” e “dificuldades financeiras” da empreiteira. O problema financeiro foi resolvido com a antecipação de pagamentos à construtora. A debilidade técnica foi contornada com a troca do comando da equipe. A operação resultou em atrasos no cronograma da obra. Que não impediram o governo de prover à Odebrecht dinheiro extra e antecipado.

Ao resumir o inusitado da situação, o relatório da CPI tornou-se surreal. Revela maior preocupação em livrar a cara do ministro do governo militar do que em esquadrinhar as culpas da Odebrecht. Diz o texto a certa altura: “Claro está que fora autorizada uma concessão generosa, não prevista no contrato: o adiantamento de recursos, uma espécie de fundo rotativo, de sorte a eliminar as dificuldades financeiras da construtora. Se tal procedimento configurou ou não descabida generosidade, nada certamente pode ser imputado ao doutor Calmon de Sá, à sua possível ‘influência’ como ministro de Estado, que não era”.

‘Evidentes fragilidades’

Concluiu-se também que a estatal Furnas praticamente fez uma “intervenção branca” no canteiro da obra ao impor a troca de equipe. Mas fez tudo parecer um prêmio, já que alterou o contrato para poder antecipar pagamentos à construtora. Para a CPI, “a decisão provou ser boa”, apesar dos “seus aspectos estranhos.” As críticas à Odebrecht converteram-se em elogios. Que desaguaram na dispensa de licitação.

Em sua fase final, a CPI trocou de relator. Jarbas Passarinho foi substituído pelo então senador Milton Cabral, que incorporou integralmente o trabalho do antecessor no seu relatório. A exemplo de Passarinho, Cabral também teve dificuldades para esconder o que estava na cara.

Os contratos assinados entre a estatal Furnas, a multinacional Westinhouse (fornecedora do reator da usina nuclear), e a Odebrecht, teve de reconhecer o senador, “exibiram evidentes fragilidades em vários dos seus dispositivos (prazos, conceitos e fórmulas de remuneração, transferência de responsabilidade, etc.), tanto que numerosos aditamentos mudaram profundamente a regra do jogo, como estabelecida inicialmente para efeito de seleção de concorrentes.”

Empreiteira mal investigada

O novo relator da CPI prosseguiu: “É claro que tais alterações forçariam substanciais aumentos dos custos, e não fizeram antecipar, nem mesmo cumprir, qualquer prazo, inclusive os renovados.” Quer dizer: o Estado pagou mais do que estava previsto no contrato. Amargou atrasos. Foi obrigado a prorrogar os prazos. Que foram novamente descumpridos. E a CPI cuidou de desqualificar apenas a reportagem que deu origem à pseudo-investigação parlamentar.

“Curiosamente, e felizmente, as falhas apontadas pela reportagem da revista Der Spiegel nas obras de Angra I não foram confirmadas”, registra o relatório final. “Como elas atingiam a qualidade técnica dos trabalhos, foi para nós um alívio constatarmos que não existiu nenhum edifício afundando como um saca-rolhas, não ficou o turbo-gerador fora de alinhamento. Comprovadamente, a Der Spiegel deixou-se levar, no caso, por falsas informações. As falhas observadas na execução de Angra I, de natureza diversa das apontadas pela revista alemã, foram puramente administrativas, que afetaram prazos e custos.”

Lendo-se o documento da CPI, percebe-se que a Odebrecht da era militar talvez não fosse mais honesta do que a construtora pilhada na Lava Jato. Era apenas uma empresa mal investigada. No período em que o governo brasileiro vestia fardas, não havia Ministério Público independente nem Polícia Federal autônoma. Norberto Odebrecht, o fundador do grupo, morreu aos 93 anos, de infarto. Feneceu em julho 2014, apenas quatro meses depois da deflagração da operação que prendeu o neto Marcelo Odebrecht e virou a empresa do avesso.

‘Negócio institucionalizado’

O destino privou o fundador Norberto de assistir à conversão do filho Emílio e do neto Marcelo em delatores. Vivo, estaria se perguntando se o negócio da família sobreviveria às palavras de Emílio eternizadas na delação que agora atribui à “coação”.

Vale à pena ouvir novamente o que disse Emílio no depoimento à Lava Jato: “O que nós temos no Brasil, não é um negócio de cinco anos, dez anos atrás. Nós estamos falando de 30 anos atrás. […] Então, tudo que está acontecendo era um negócio institucionalizado. Era uma coisa normal. Em função de todos esses números de partidos, onde o que eles brigavam, era por quê? Era por cargos? Não. Todo mundo sabia que não era. Era por orçamentos gordos. Eles queriam orçamento. Ali os partidos colocavam seus mandatários com finalidade de arrecadar recursos para o partido, para os políticos. Há 30 anos que se faz isso.”

A institucionalização da cleptocracia levou a Odebrecht a injetar no seu organograma um “departamento da propina”, esquadrinhado pela Lava Jato. Uma excrescência minimizada por Emílio em seu livro: “O que existiu foi um sistema de geração de recursos não contabilizados, o popular ‘caixa dois'”, ele anotou, antes de escancarar a perversão: “Não sejamos hipócritas: desde a invenção do capitalismo, é comum empresa média ou grande manter pelo menos 1% de seu faturamento ali alocado. Não é certo, mas assim é, e serve para atender contingências inesperadas.”

O sítio de Atibaia

Além de se abster de comentar em seu livro os primórdios da corrupção da Odebrecht, que inclui o relacionamento promíscuo com a ditadura, Emílio cuidou de transformar num asterisco a menção à reforma no célebre sítio de Atibaia, cedido a Lula graciosamente por amigos.

Impossibilitado de negar o inegável, voltou a admitir que sua empresa custeou benfeitorias no sítio. Mas escamoteou os motivos. Limitou-se a reiterar que acionou sua generosidade a pedido da então primeira-dama Marisa Letícia. Para Emílio, não houve crime, pois “Lula deixaria a Presidência no final daquele ano [2010] e meu gesto não estava vinculado a qualquer agradecimento ou expectativa de retribuição futura. Dali a alguns dias o governo seria outro”.

No livro de Emílio Odebrecht, a corrupção comprovada virou conto da carochinha. A descrição, por tardia, já não tem serventia para Lula, pois as sentenças contra o atual presidente, anuladas pelo Supremo Tribunal Federal, viraram pó junto com a prescrição dos crimes. O livro também não tem valor literário. Tampouco é confiável como documento histórico. Se o livro serve para alguma coisa é para lembrar que, no Brasil da corrupção sem corruptos nem corruptores, nada se cria, nada se transforma, tudo se corrompe. Inclusive as operações anticorrupção.


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