Depois de ler a coluna de João Pereira Coutinho e o texto de Gabriel Trigueiro sobre “Monsters” na Folha, achei que deveria enfrentar a obra de Claire Dederer. Fiquei um pouco decepcionado. Não é que o livro não traga reflexões interessantes sobre como a biografia de artistas afeta a apreciação de sua obra. A autora começa mostrando como ela própria faz para conciliar sua ojeriza moral a Polanski, o “estuprador anal”, com o fato de ele criar ótimos filmes. O que me incomodou em “Monsters” é que o tom é memorialista demais, a ponto de esconder o que deveria ser óbvio.
Ninguém exige que o judeu sobrevivente de campo de concentração aprecie Wagner ou que a militante feminista seja fã de Schopenhauer. Na verdade, ninguém precisa justificar por que não “consome” um determinado pensador ou artista. A vida é curta demais para ler, ver e ouvir tudo. Mas, para os que se propõem a analisar obras criticamente, penso ser indispensável pelo menos tentar separar o autor do trabalho avaliado.
Ainda que num plano psicológico seja impossível fazê-lo inteiramente, a crítica é um exercício técnico em que as obras devem ser interpretadas como se fossem autônomas em relação a quem as criou. Se deixarmos que as biografias deem as cartas, não sobraria muita gente (essa é uma reflexão que Dederer faz; em algum grau, somos todos um pouco monstros, conclui ela). E é fácil ver que a posição moralista levaria a paradoxos. Basta lembrar que existem muitos cientistas cujo comportamento pessoal é reprovável, mas isso não invalida suas teorias.
Penso que a crítica tem um parentesco com o jornalismo. A objetividade é uma meta inatingível, mas nem por isso devemos nos dar por derrotados e já começar uma reportagem vestindo o chapéu do militante. Fazê-lo piora em vez de melhorar o jornalismo.
“Monsters”, ao enfatizar demais a dimensão única de cada fã (ou hater), acaba atenuando o mais essencial.
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