A internet está coalhada de vídeos nos quais crianças pequenas gritam frases sobre seu próprio valor, beleza e inteligência. As declarações são bem ensaiadas e ditas em tom de protesto contra quem diz —ou pensa sem dizer— o contrário. Um antídoto que os pais inventaram para a violência contra as meninas.
A graça das crianças e o prazer de vê-las tão felizes e autoconfiantes nos deixam com um sorriso nos lábios e explicam a viralização dessas imagens.
Boa intenção aqui não falta, mas os mal-entendidos já se fazem notar.
A constituição psíquica se dá a partir da experiência que culmina com a imagem de si. Tentando resumir os rios de tinta que a psicanálise acumula sobre tema tão fascinante, diria que tudo começa com o bebê experimentando seu próprio corpo enquanto é carregado, olhado, alimentado, escutado.
Desde a perspectiva do bebê, trata-se de uma profusão de sensações que, a partir da relação amorosa e investida com os cuidadores, culminam no reconhecimento de si.
O caos psicodélico das sensações de prazer e desprazer dá lugar à descoberta de que existo eu e existem os outros. Isso nos leva à primeira “crise existencial”: afinal, e se o outro me faltar? A criança que ia no colo de todos começa a recusar fazê-lo; a que dormia bem passa a acordar com frequência, enfim, não é fácil reconhecer que dependemos inteiramente da boa vontade de estranhos.
E o que sustenta esse salto a partir do qual eu me digo “eu”? A imagem de si nomeada pelos cuidadores. O bebê se vê refletido no espelho e no olhar dos cuidadores que dizem que esse é o bebê. Os cuidadores encontram no contato diário formas de demonstrar que reconhecem o bebê como um semelhante.
Reconhecer-se, então, é sempre a partir do outro. Assim que nos descobrimos, queremos saber qual nosso lugar na fila do pão, pois é na comparação com o outro que nos organizamos.
A imagem, portanto, é escorregadia, e ao nos fiarmos nela construímos nossa casa sobre a areia movediça. São as armadilhas do Eu, que adora se definir como sendo assim ou assado enquanto o inconsciente dá o ar da graça para lembrar que o eu é apenas a ponta do iceberg da subjetividade. Quanto mais somos capturados pela imagem no espelho, mais instável é nosso psiquismo.
Estudos têm demonstrado como as imagens idealizadas das redes sociais são mais deletérias para as meninas. Automutilação, depressões e distúrbios alimentares, decorrentes da distorção da autoimagem, são pregnantes entre elas.
Entre o discurso autoafirmativo e a experiência subjetiva existe um abismo, que não pode ser ignorado.
Glórias sociais não são suficientes para sustentar uma imagem inflacionada por palavras de ordem.
A autoconfiança, quando forjada de fora para dentro, não deixa espaço para o titubeio humano constitucional e revela as altas expectativas dos cuidadores.
Freud descobriu que o eu insiste em se autoafirmar no discurso manifesto na medida exata em que tenta escamotear aquilo que desconhece em si. O mesmo sujeito que jura “amanhã eu começo!” é aquele que não levanta no dia seguinte, revelando a divisão entre a promessa egoica e o inconsciente. Antes de tudo, é melhor descobrir em nome do que nos levantamos, afinal.
Fortalecer as crianças implica ajudá-las a reconhecer sua falibilidade, sem subestimá-las ou superestimá-las. Tarefa hercúlea dos cuidadores diante do narcisismo infantil. Mantras de autoenaltecimento têm como lastro nossa ilusão de completude.
A potência humana não partiria justamente do reconhecimento de nosso desamparo estrutural?
Essa é a aposta de uma análise.
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